quarta-feira, 28 de julho de 2010

Boipeba

hoje o dia amanheceu lindo, o que muda totalmente as paisagens.
logo cedo, enquanto tomávamos café na varanda, o Felipe passou aqui com sua prancha nos convidando para ir a Moreré - o que, a princípio, era meu plano -, mas resolvi ir a Cueiras com o Armani, que ainda não havia estado lá. depois, aguardando a maré baixa para atravessar o rio, fomos pra Moreré, a praia ao lado.
observar o ritmo da natureza e poder definir interações a partir disso é uma coisa maravilhosa que, num outro contexto, nunca é possível. maré alta, maré baixa, chuva, acho isso bonito.
a praia é linda, água clara, pedras, muitas piscinas naturais. paramos por ali pra almocar e fiquei pensando que aquela paisagem se assemelhava com que muitos considerariam paraíso (ainda mais com tantos urubus rodeando uma carcaca de baleia que estava por ali).
observacao: só pra nao sentir saudade das contacoes do ano passado, desta vez estou com um teclado argentino.
dali, maré já cheia, comecamos a voltar pela vila de Moreré, lugarzinho bucólico de onde as criancas saem de trator para a escola. cruzamos com tres deles voltando para o povoado. a trilha nao é tao curta assim. sobe morro, desce morro, vistas lindas, só o som do mar e dos pássaros, partes alagadas por onde só o trator passa. devemos ter demorado uma hora e meia mais ou menos. andamos tanto que cheguei com o pé mais do que esfoliado. agora tenho que cuidar mais dos meus passos.
à noite, fomos a um bar logo ao lado onde estavam os espanhóis, brasileiros e argentinos que trabalham em um reality show que está sendo filmado aqui. sao seis casais que precisam reformar uma pousada e que tem algumas provas, desafios, essas coisas.
dali a pouco, apareceu um trio daqui, já altos, com um violao cantarolando várias músicas. adoro.

terça-feira, 27 de julho de 2010

paca, tatu

hoje a paz voltou a reinar em minha cabeça.
seguindo minhas preces, São Pedro enviou poucas nuvens à Bahia e, então, saímos para Boipeba. tendo internet sem fio, Armani resolveu vir junto - pois ele precisa trabalhar.
rumamos à lancha e, quando chegamos, ele desistiu com medo de molhar seu violão e o computador. então tchau. sorry. no problem. sem contatos, sem nada.
aí lá estou eu pensando na vida antes da lancha sair quando volta Armani, violão já metade molhado. nem perguntei o porquê da mudança, mas, enfim, ele ficou mal humorado pelo resto do dia. isso teve lá seu lado bom.
aqui chegando, lá fui eu pra praia sozinha. Tassimirim, onde fica? pra lá. não havia ninguém no caminho. comecei a me lembrar da "cosmologia" da Ilha (Comprida), onde meus tios têm casa e onde passamos parte da infância. parecia o paraíso, mas pouco a pouco, cada um de seus personagens foram morrendo assassinados.
pois bem, eu ali na estradinha de areia, sozinha, pensando se devia prosseguir ou não. o barulho do mar ali pertinho (mas no deserto também há miragens). cruzei com um rapaz de carroça que me informou - não, esta é a Cueiras, a Tassimirim é pra lá.
Cueiras, eleita uma das 10 praias mais bonitas do mundo (sabe-se lá por quem). de fato, este lugar é lindo demais!
a praia, quase vazia, tem a areia muito fina e clara e é toda cercada por coqueiros.
um rapaz passa e - vamos surfar? - não, obrigada. apesar de que eu sempre ter querido surfar, mas não era hora.
depois de um tempo, ele me chama de novo - quer coco? a gente vai pra Boca da Barra e vai pegar uns cocos. aceitei.
nada melhor do que andar com um nativo. o Felipe é professor de surf e mergulhador de resgate - além de pescador. me mostrou vistas lindas pelo caminho e o lugar para onde ele vai quando fica estressado. - você consegue ficar estressado aqui?
passamos por Tassimirim também e entramos no sítio do pai dele. tomamos coco, vi toca de tatu. - que animais vivem por aqui?
- muitas aranhas, jiboia, paca, tatu [cotia não?], tatu peba (que, dizem, come defunto), saruê [é isso que a Iara Rennó canta?], e o tal do joão pará, um bicho parecido com macaco mas que não é macaco, anda em duas patas e tem um rabo enorme. tem um homem por aqui que tem apelido de João Pará e que, quando o chamam assim, corre atrás da molecada com o facão. nunca pegou um.
a Boca da Barra é onde o mar se encontra com o Rio do Inferno. Morro de São Paulo era o ponto em que os portugueses protegiam nossas terras contra os holandeses. quando estes últimos encontraram o rio, passaram a tentar entrar por ali. como há muitos bancos de areia, os barcos encalhavam e os tripulantes eram atacados por indígenas canibais. daí o nome.
o Felipe e os dois amigos dele (o Gambá e o Gilson - acho) são descendentes de tupinambás, me disseram.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

as cores da Bahia (e a trilha sonora também)

no primeiro dia em Morro, o sol se abriu. fiquei impressionada com a tonalidade da água, da areia, dos coqueiros, do céu, das peles. não precisaria enganar fotometria alguma.
uma pena que tem sido assim poucos dias. chove muito por aqui estas semanas e, quando as nuvens se afastam, corremos pra praia. então chove, pára, chove de novo, cada vez em uma intensidade.
Morro é um ligar bonito, mas com tanta chuva, fica difícil explorar a ilha. outras questões também são importantes. como este lugar é turístico! é impossível andar por aí sem ser abordado a cada 10 metros por alguém que quer que você beba alguma coisa, coma alguma coisa, visite algum lugar, etc, etc, etc.
a segunda praia é cheia de bares, restaurantes, pousadas, hoteis. a moda aqui é música ao vivo. de preferência, o mais alto possível. assim, onde quer que esteja, você ouve ao menos três músicos de uma vez. repertório: Tim Maia, Só pra contrariar, Ana Carolina, Calipso, entre outras boas e muitas não.
hoje resolvi me embrenhar pelas ruazinhas. assim descobri as pessoas que moram aqui, outras pessoas que não apenas as que encontro na praia, nos bares que não frequento.
espero que amanheça com bom tempo. sigo para Boipeba.

sábado, 24 de julho de 2010

gentileza

ainda da Praia do Forte, tanto pra dizer. estou sem internet e não tenho me preocupado muito com isso, apesar de querer escrever algumas coisas. então, divido em partes. quando puder, vou atualizando.

na terça, fomos ao "castelo" Garcia D'Ávila, uma casa fortificada, construção quinhentista no ponto mais alto daquela região onde funcionava o almoxarifado dos colonizadores. a área foi o maior latifúndio do... mundo? América Latina? Brasil? algo grande, eu sei. futuramente, fotos no Flickr.

alugamos duas bicicletas com o Mazinho, a Márcia e eu. foi muito legal. o Antonio foi junto. os dois trabalham no hostel e são pessoas bem bacanas. nos divertimos um tanto com eles.

tava chovendo e eu, é claro, sugeri que fizéssemos capa de chuva com saco de lixo. talvez por isso, talvez não, me lembrei muito da época em que fazíamos aventura com o Muca no sítio. meus irmãos, minhas primas e eu atrás dele. levávamos algum mantimento e lá íamos nós mato adentro, rio acima, rio abaixo, até encontrar algum obstáculo, algum inimigo a ser combatido.
na volta, descida, demos um pinotinho e foi mais rápido o percurso de 5 km. vim cantando o que cantávamos naquela época. o Muca guiava, a gente fazia o coro. marinheiro, marinheiro...
à noite, os dois se oferecram pra fazer nevada, uma bebida que dizem ser típica de lá. muito bom: gelo, um pouco de leite condensado, limão e Ypioca. tudo no liquidificador. fica com textura de "neve" - daí o nome.
engraçado como as coisas passam a se repetir na nossa vida de repente. conheci o Guiné, que trabalha com importação de bicicletas e equipamentos e tem o site pedal.com(.br?). bacana ele.
havia também um inglês doido, mais velho (cerca de 50) que pedalou 28 mil km do Alasca a Ushuaia em 18 meses. agora está conhecendo outros lugares.
no dia seguinte, vínhamos para Morro de SP, mas era o último dia da Márcia e resolvemos aproveitar que o sol apareceu para irmos a Imbassaí. perigoso um cacófato desse justo no Bahia.
a praia é bem bonita. lá desagua um rio. ótimo pra entrar no mar, entrar no rio, entrar no mar, entrar no rio. ventava muio e esse movimento me deu vontade de dançar - coisa que se repete com a marola.
no dia seguinte, o Armani, um croata que mora em Buenos Aires (êeeh, mãe Gabi), e eu viemos pra Morro. longo trajeto. van até Salvador, ônibus para o ferryboat, ferryboat, ônibus, mais um, barco. enfim.
cá estamos.
o lugar é lindo. depois conto mais.
depois conto mais.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Praia do Forte

Sete horas: de pé! o caminho pra Praia do Forte exige alguns ônibus (tá, só dois, mas é que é Bahia, óxente!). e lá fomos a Márcia e eu. São Marcos à rodoviária (de onde o próximo era só às 11h), atravessa a plataforma, a outra, até chegar ao ponto do Itaú por onde passava outro ônibus. pois lá já fomos abordadas por um cara da van (afinal, também é Brasil!). negociei o preço (afinal, sou brasileira) e entramos ali - ainda bem, antes de sair. porque, no caminho, o homem não parava de pôr gente dentro daquele veículo até que uma mulher que esperava à beira da pista entrou e disse: vixe! mas é perigoso! e o homem retrucou de pimpa: perigoso é a senhora esperar aqui!
aaaai, como eu ri por dentro (e um pouquinho por fora também). ôooh Brasilzão das futrinca!
então chegamos à vila que é a Praia do Forte. bastante turística, é vero, mas bem bonitinha. muitas lojas de grife, biojoias, artesanato para casa.
no hostel, encontramos uma campineira companheira de quarto. ela tem três hérnias na coluna e artrose, que já afeta os braços e a cervical. não pode andar muito, tem que usar um saltinho. uma das alemãs tinha cortado o cabelo no quarto e jogado na pia - que estava entupida. ela havia combinado com outra alemã de ir pra Mangue Seco amanhã, pois não queria viajar sozinha, mas, sabendo que iríamos pra Morro de São Paulo, pensa em desmarcar com a colega alemã, que cedo foi pra praia e nem a chamou. como eu andava de chinelo? como carregava aquela mochila nas costas? isso é sério, hein? se não se cuidar, você sabe que pode ficar na cadeira de rodas? o meu caso já é de cirurgia. prótese!
pois bem, como ela já tinha almoçado, tivemos o azar de não poder contar com sua agradável companhia. o comércio é bem forte aqui, coisas de lugar onde tem muito gringo (não só de outros países).
Sede do Projeto Tamar. lugar bacana. um trabalho admirável! sempre penso o que teria sido de mim se eu tivesse resolvido mesmo fazer biologia. não estaria mal, creio.
depois fomos caminhando pela praia até as piscinas naturais. a maré não estava tão baixa, mas se vê seu contorno pelas águas verdes mais claras (e a água estava quente!).
a praia é toda rodeada por coqueiros enormes, lindos. paradisíaco.
no caminho, um garoto veio falar com a gente: vocês não lembram de mim? ofereci as bicicletas pra vocês lá na frente do hostel. então nos acompanhou pela praia. ele é guia tuístico e dá aula de percussão pra molecada da vila, o Jefferson. agora, são uns 30. vocês tão com sede? sim. vou pegar um coco pra vocês. e subiu no coqueiro, derrubou 3 cocos, abriu na mão, com um galho, e nos deu. naquele momento eu pensava em tanta coisa!
tanta coisa mesmo... que isso parece sonho, mas que, não sendo, é realidade. é uma realidade que eu vivo agora, é a realidade desse menino que nasceu num lugar como este e que, desde moleque, brinca no mar, trepa em coqueiro, abre coco, toca atabaque, pesca com a mão.
cada vez maior a minha convicção de que a gente tem é que se jogar no mundo. sim, é claro, o que nos toca no bom sentido também pode fazê-lo pelo lado negativo - e assim que fiquei com dor de estômago por mais de mês ao voltar de um preassentamento em 2007.
mas sou apaixonada por isso tudo. às vezes tenho a impressão de que, se pudesse, me fundiria com o mundo pra viver tudo e todos que fossem possíveis.
prossigo com o Auster. fantástico.
ah! claro! fomos comer beiju (ou tapioca) na Casa de Farinha. é um lugarzinho feito de taipa no meio do passeio onde um casal (a senhorinha de lenço na cabeça) e mais um homem preparam tudo em um fogão à lenha. lindo.

domingo, 18 de julho de 2010

Mateus Aleluia

acordei com a chuva de novo. café com os mesmos dois conversando sobre engenharia de pesca e permacultura (o que não é de todo mau) mais uma alemã bem gente boa que chegou ontem.
às 11h fomos ao show do Mateus Aleluia. nunca tinha ouvido falar a respeito. era uma espécie de ensaio geral para gravação do dvd, que ia acontecer agora à noite. nunca uma apresentação foi tão longa. saímos de lá às 14h. pudera, houve a participação, se não me engano, de 8 grupos diferentes - entre eles, a Orquestra Afro Sinfônica e a Fabiana Aleluia, filha do homem, que vão merecer uma pesquisa.
o Teatro Castro Alves é enorme e muito bem cuidado, desde fora até a estrutura em si, palco com dois níveis, muitas varas, pé direito alto (hehe, a gente passa a reparar nisso). a entrada foi R$1,00 e quase todos os mil lugares estavam ocupados. apesar da bagunça que ele fez no palco, conseguia consertar tudo, por fim.
o som é uma espécie de samba com muita influência afro, em outros idiomas - quais, não vou saber ao certo dizer. foi lindo demais ver aquele monte de gente cantando músicas que, se vê, representam muito de uma cultura, de uma história tão forte. parecia uma oração.
de lá, passamos pela praça Dois de Julho (em frente à cobertura da Ivete Sangalo, que é vizinha do ACM Jr) e viemos andando até o Farol da Barra. a relação com a cidade é completamente outra quando se anda por ela. isso sempre me deixa apaixonada.
Fui com a Márcia (mais uma goiana) ver o pôr do sol na praia. Sempre bonito.
Amanhã rumo à Praia do Forte.

sábado, 17 de julho de 2010

rediários

Ontem assisti ao sol nascer a 11 mil metros de altitude. De cima, as nuvens parecem nos dar a dimensão da finitude do céu, como as ondas dão a do mar.
E eu que também não sei quase nada do mar, vim à terra de Caymmi e de Bethânia descobrir um pouco mais sobre mim.
De cara, a descoberta foi de que em Salvador nada (ou quase) se faz debaixo de chuva. Pois foi assim que me deixei estar pela tarde, tentando me recuperar das poucas duas horas de sono daquela noite em que viajei.
A boa primeira surpresa foi logo na saída. Já que, como sempre, não fiz tudo o que queria antes de partir e que uma dessas pendências era escolher (ou comprar) um livro de um baiano para a viagem, tive que escarafunchar as La Selvas dos dois aeroportos. Na primeira delas, nada que eu quisesse ou tivesse condição de aproveitar. Na escala em Belo Horizonte, encontrei 1984 e um Paul Auster. Como boa libriana - como diria a Melina -, comecei a pesar todos os prós e contras de um e de outro, tema, proximidade com o que se passa comigo e meus interesses, preço, primeiro parágrafo... por fim, nem me lembro por que (mas poderia citar várias razões agora), fiquei com Invisível. Fazia meses que eu queria e não encontrava um romance que me prendesse tanto, assim como fazia tempo que eu tinha interesse em conhecer algo do Paul Auster. Matador.
O Hostel aqui é bem bacana. Às vezes me surpreendo porque, apesar de me considerar tímida, como certa vez me disse o Dalmoro, eu chego a ser simpática com o cara que vende ingresso pra churrasco de engenharia na porta do bandejão. É claro, lá fui eu puxar assunto com todos. Pra variar, muito gringo (nenhum Brian por enquanto!).
É curioso como cada um se relaciona com seus medos. Vejo muita gente entregando os perigos ao colo do outro. Um austríaco me disse que não tinha saído nenhuma noite no Brasil porque achava perigoso, uma conhecida havia sido assaltada. A gente vive aqui, eu disse. Acho que é preciso encarar o mundo. É claro que tudo pode acontecer e que há más coisas, mas quais são nossos limites? Hoje ríamos porque ninguém me infernizou no Pelourinho, não coloquei fitinha do Senhor do Bonfim no braço, não insistiram, não me pediram dinheiro. É minha cara de baiana ou o corpo fechado.
Pois bem, logo cedo lá fomos eu e meu novo amigo agrônomo de Itapeva que mora em Feira de Santana para o Palacete das Artes ver a exposição do Rodin. Eu já gostava dele, mas ver esses trabalhos de perto, como sempre, me fez ter mais interesse pela obra. Sem contar toda a dedicação à Divina Comédia. Fiquei pensando o quanto de movimento expressivo aquelas esculturas não poderiam gerar (pois já é isso que elas provocam estáticas). O espaço também é lindo. Mais por fora do que por dentro, já que as pinturas no teto e nas paredes chegam a pesar sobre o trabalho exposto.
Depois, fui pro Mercado Modelo, elevador Lacerda, Pelô, igreja, igreja, igreja. A de São Francisco é mesmo impressionante. Mas grande parte das igrejas são. Mais me chamou a atenção a sala dos santos. Quatro paredes da grande sala rodeadas por vários manequins com perucas, pedaços faltando. Uma coisa horrorosa! Ao mesmo tempo, uma mulher franzina de cabelos loiros armados abordou duas meninas: Vous êtes françaises? Eram. Então venham, aqui tem mais uma parte que vocês precisam conhecer (óh bondade humana). Não, a gente não quer. E a mulher ficou insistindo, as meninas foram saindo e, por fim, eu naquela sala dos santos com a doida se dirigindo às francesas Vous pensez que vous êtes meilleures! Vous êtes pauvres! Como é difícil lidar com a frustração, não?
Mais tarde, no MAM pro jazz ao pôr do sol, lá estou conversando com uma soteropolitana amiga de uma sorocabana e... Letícia e Leandro! Coincidências da vida, um casal de amigos de Campinas.
É como tomar uma cerveja na Auguta: 90% de chance de encontrar algum conhecido. Pessoas em comum circulam pelos mesmos lugares.
Pois fomos comprar os ingressos e... Giovani??? O Giggio, nosso famigerado bixo, agora mora em Salvador.
É encantadora uma jam com vista para a Baía de Todos os Santos.
Espero que amanhã não chova e que haja coentro.
Axé!

segunda-feira, 29 de março de 2010

Flores horizontais

A brancura do papel, era difícil encará-la torpe de remédios.

Olhava para as flores daquele jardim que, visto de dentro, era quase engolido pela janela do quarto, único cômodo da casa.

Seu corpo nu, entregue, desnudava partes outras que não pretendia expor de si, de uma vida podada a golpes fortes demais para que lhe arrancassem mais do que apenas os espinhos.

Do lado de fora, sentindo a terra molhada no rosto, vendo-a grão a grão, olhos semicerrados, a paisagem era outra. Olhava para os pequenos caules, tão delicados, envoltos por pequenas e grandes folhas. Flores horizontais.

O orvalho gotejava em todas elas.

A sensibilidade tão aflorada às vidas que com a sua haviam cruzado. Flores da vida, fertilizadas e desplantadas por carícias, tapas, pontapés.

A caneta tremia na mão sobre os reflexos do luar, pretendendo endereçar palavras e sentimentos a quem não os tinha, a quem, não sabia, neste último momento, em seu despetalar que dispensou a extrema unção.

(Este texto se baseou em "Flores horizontais", de José Miguel Wisnik. Desafio proposto pelos amigos e colegas "poetinhas" a partir de sorteio de músicas escolhidas por nós).

terça-feira, 16 de março de 2010

Dita

Quando ela chegou com aquelas pálpebras murchas, cheias de água, falando, babando, choramingando pelos cantos da boca, me deu um nojo que só. Que desgosto.
Ela resmungava, pele escorrendo áspera, voz rouca agargantada, choro engolido e regurgitado.
Dizia que sua felicidade estava em mim e que eu desse outra chance pra nós dois. Só assim o mundo teria razão de existir, me dizia. Dizia.
Ditinha, me deixa. De ti eu tenho é nojo. Um nojo que só. E ela nem sabia. Ela sofria, sofria como um porco indo para o abate. Nem as pelancas gordas eu aproveitaria.
Me dava era nojo de mim por ter passado tempo com a desgranhada. Não valia nada. Mulher chocha, galinha choca. Eu queria era mostrar pra ela o caminho do abismo, que sumisse, que escafedesse, que se apagasse das minhas lembranças a existência dessa mula.
Some da minha vida, sua vaca! Ela chorava. Não acreditava no que eu dizia, era máquina, não pensava. Ela não entendia. Existência alguma.
Dita não tinha palavras, ela tremia. Ela soprava, bufava. Foi se acalmando, tremelicando, fedendo. Aquele suor abafado do sovaco, das pelancas. Dita e suas ancas. Que ancas! pensava eu havia meses. Agora eu tinha nojo, vomitava, se chegasse perto.
Mulher úmida, poço raso. Fodia, urrava, de novo e de novo, não tinha prazo. Acho que foi disso que a Dita gostou. Homem algum chegava perto dela. Eu, o trouxa, o pau duro, ela cadela.
Se pensasse, teria me prendido ali com o bucho cheio. Nem barriga d'água a desgraçada pega. 
Peguei foi a bengala, ou você sai daqui ou eu te esmigalho. A Dita parou. Chorou. Ficou ali me olhando. Espasmos que chacoalhavam o ranho dependurado pelo nariz. Os olhos de repente ficaram vazios. Estado de choque. A Dita saiu. Pé ante pé ela saiu.
Eu continuei sentado. Desgraçada. Te vá.
Atravessou a porta, roçou no pilar.
Eu nunca mais vi a Dita.
Eu conto essa história pra ver se ela some. Mas a Dita não vai.

sábado, 6 de março de 2010

consumo

Cheguei. Ele não sorriu. Desceu do carro e entrou no meu. Avancei para lhe dar um beijo (humilde) no rosto. Indicou o caminho de sua casa por ruas erradas dizendo que eu tirava sua concentração.

Chegamos. O pitbull também ignorou a minha presença (pelo menos não havia sido ele quem me convidara para ir até ali).

Andava pela casa à minha frente como se eu morasse no mesmo lugar. Me senti como um cão abandonado que segue o pretendido dono, pidonho.

Ligou o computador. Teclava nervosamente. Sentada à beira da cama, via sua cabeça, seus dedos, atrás de mim, projetados em silhueta no vértice da parede, enormes, Nosferatu.

Vou embora.

Por quê?

Por que me convidou para vir se não queria que isso acontecesse? As coisas são simples, ninguém te obrigou a querer a minha presença.

É que eu estou ocupado, tenho muita coisa pra fazer antes de viajar. Desculpa.

Vou embora.

Por quê?

Me desculpa, mas eu não aguento (nem mereço) tanta indiferença.

Ta certo...

Desespero internalizado. Esse era o medo que me fizera não dizer nada. Fiquei ali, à espera, pensando em nunca mais fazer o mesmo, me afundando, me dispondo o quanto não devia, por mim, por ele. Diferentes histórias, expectativas, aconteciam simultaneamente. Um achando que o outro não percebia suas intenções, o outro, pensando em mostrá-las, desnudá-las o quanto as pudesse enxergar.

Não fujo da verdade. Quero que me jogue na cara, me esbofeteie e cuspa.  É da sua saliva que eu tiro a minha força. Dessa vez – mais uma delas – não foi. Esperei a sua disposição em vir se deitar. Nossas palavras se cruzavam, ritmadas, mas, por fim, consumidos, nos distanciamos. Eu perfurada, vazada, tangida. Ele fechado, lacrado, lavado, incólume.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

quando o mar me engolir

eu vou rolar nas ondas, me afogar em conchas até sucumbir.
então, quem sabe, a água em sal me salve, feche o corpo e cure o mal que eu me mesma me fiz.
os grãos hão de esfolar as impurezas desta alma, arrancar-me a carne, deixar-me imprópria para o consumo sem alarde.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

A beleza das nuvens

Um dos poucos dias em que tenho descanso, em que o tempo pára e me permite sentir a poesia da vida. As nuvens estavam bonitas, grandes, fofas, densas. A luz do sol refletia contornos dourados num céu de fundo azul forte.
Elas se moviam como em um filme em câmera lenta, ou em imagens corridas de fenômenos naturais como o brotar de uma flor. 
Deitada no quintal, pensava em qual seria minha trilha sonora para aquele experimentalismo.
Da janela do banheiro logo atrás de mim surgiu um peido.
A vida é bela e imprevisível demais. O acaso, capaz de compor paisagens maravilhosas.

Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

Entreguei-lhe o livro e disse que, desse sim, ele gostaria. Depois de ter lido um de meus autores preferidos - mas cuja obra entendo ser bastante específica, variável e, talvez, de um humano denso demais para pessoas leves na vida -, recebia uma das melhores narrativas de um dos melhores criadores literários deste tempo. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios.
Dizia a ele que não tomasse cuidado. De um furacão nunca nos esquecemos. Entramos na tormenta e tudo se passa de forma apaixonante, embriagada, doentia, capaz de remexer as entranhas.
De um capítulo  a outro é difícil parar. Sua falta é "como uma nuvem sinistra de abandono" que se estaciona em cima de mim. O Marçal nos amarra, obriga o leitor a continuar ali. Talvez seja metalinguagem. Me senti como um Cauby viciado em uma Lavínia. Queria viver aquela paixão, aquela doença.
Lembro de uma amiga que fora passar dois dias em casa. Impossível sairmos para uma cerveja, já que havia começado a ler o livro. Esperei que terminasse. Passara o dia grudada naquelas páginas. Imaginei o que sentiria ao pegá-lo, enfim. Precisava disto agora. E a cada dia suas palavras me convencem mais de o Marçal ser  um dos melhores autores.
Dele, eu recebo as piores notícias, uma tormenta sem a qual não há graça viver.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

0:00

acordo com esta tosse que quase me faz sufocar e penso que, se morresse aqui sozinha, numa noite baixa, não haveria quem pudesse notar. nesta ilha branca, isolada num quinto andar, me roda na cabeça as possíveis razões por sentir a energia vibrar tão pouca. minha luz, a força e referência do meu caminhar, parece arrefecer por sua própria protetora se esvair, aos poucos se distanciar. aquele pilar, a ponte em pedra, a âncora que finca mar, adquire sua leveza que paira e se esconde - fugidia - em seu mundo que, na verdade, em toda minha vida, nunca quis mostrar.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

1- Cabeça a prêmio, do Marçal Aquino

Merece o topo. Depois de te-lo lido, passei alguns dias (senão semanas) a imaginar pessoas com armas ao meu lado ou que tavez fosse corriqueiro um assassinato. Não. Fui transportada pela narrativa e comecei a pensar em de que modo, talvez, eu não pudesse me considerar uma pessoa esquizofrênica. Esse livro é daqueles que se começa a ler e não se pode mais parar até terminar - o que te deixa desolado.
Afinal, a narrativa te faz entrar em um ciclo ao qual você (provavelmente) não pertence, mas que passa a compartilhar e possivelmente a desejar fazer parte dele. O Marçal consegue construir um mundo sedutor, apesar de sua tremenda hostilidade.
A capacidade do escritor em construir personagens paradoxais é enorme, o que me fez me apaixonar pelo Brito, um matador cujo único amor foi uma prostituta. Apesar de fechado, nos é mostrado um lado muito humano desse personagem.
Os capítulos não seguem uma ordem e o mais impressionante foi saber que esse quebra-cabeças foi escrito como publicado pelo autor.
Eu diria no imperativo mesmo: leia.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

2- Um crime delicado, do Sérgio Sant'Anna

Tenho a tendência de gostar de sarcasmos, de coisas aparentemente belas, delicadas e que, na verdade, são densas, sujas, criminosas, remexem as entranhas. O Sérgio Sant'Anna é assim.
Com certeza, a maior das descobertas de 2008! (Tá, ano anterior, mas merece e, assim, me eximo de culpa por não compará-lo aos de 2009).
Com ele elaborei a teoria do campo de energia dos livros. Quando te pegam pra valer, é como se houvesse um campo de energia que não te deixa passar incólume pelo mesmo ambiente em que esteja. Com este e O Monstro foi assim. Ali estavam num canto do sofá quando eu tinha que fazer outra coisa mais urgente, mas não conseguia passar sem olhar, sem sentir aquela atração física e, em grande parte das vezes, parar um pouco até me arrancar forçada de perto deles.
Neste, um crítico de teatro divaga sobre seu cotidiano, sobre seu trabalho, as mulheres com quem se envolve e os homens ligados a elas. Extremamente crítico, sagaz. Adoro sua ironia e a subjetividade que cria para um sujeito cujos pensamentos acompanhamos voyeuristicamente. 
A narrativa é construída pelo personagem a partir de seu ponto de vista e, com o ritmo dos acontecimentos já vividos, a história se revela aos poucos, como a que um amigo conta tentando nos convencer de sua razão para determinado fato.
O livro é tenso, cria um suspense que não te deixa sair.
Transcriado para o cinema com adaptações consideradas adequadas à linguagem, a história perdeu. O filme é ruim, não consegue criar a densidade, o incômodo que o livro nos proporciona. Claro, "não devemos compará-los livro e filme", mas a qualidade é gritante. Beto Brant e Marçal (talvez, já que não li o roteiro) desandaram dessa vez.



3- RASIF - Mar que arrebenda , do Marcelino Freire

Se o Mutarelli foi uma boa supresa, o Marcelino foi a descoberta de uma flor rara que nasce na mata e que todos desejam. Não apenas pela sua escrita, prosa poética, ritmada, que samba leve na lama, afunda os pés com gosto em um mangue que se confunde com um banho de argila. O cara reluz, contagia, traz à tona as verdades sutis de um mundo poético.
Seu imaginário passeia por uma Recife à margem, pedregosa e hostil, de onde emergem pessoas, falas, vidas em versos. Dali a São Paulo, onde vive há alguns bons anos, as palavras passeiam acertivas.
Além de escritor, anima a Literatura (e outros cantos) deste país. É um dos idealizadores da Balada Literária, entre outras tantas.
O livro é rápido, ágil, intenso. As ilustrações do Manu Maltez, em gravura, completam a obra com sua beleza nervosa e incômoda.
Foi minha indicação para presentes.